quinta-feira, junho 01, 2006

Jantares de casalinhos: Prolegómenos a todos os estudos etnográficos futuros

É um facto sobejamente conhecido que os jantares de casalinhos são um caso paradigmático da vida dos casalinhos (uma vida particularmente odiosa, relembre-se). Deste modo é inegável a relevência de estudar este fenómeno de modo a aumentar a nossa compreensão sobre os casalinhos – know thy enemy. As linhas que se seguem destinam-se a ajudar aqueles que, por um rasgo de falta de sorte, se vejam na situação de ir parar a um jantar de casalinhos. A recomendação é que, caso se dê essa infelicidade, se aproveite a situação para realizar um breve estudo etnográfico, já que não vale a pena desesperar nem cometer actos puníveis pelo código penal.

Por “jantar de caslinhos” entende-se um jantar em que se juntam vários casalinhos para uma sessão de convívio casalínhico - não deve confundir-se com “jantar de casalinho” em que apenas o casalinho vai jantar, o que é uma situação igualmente odiosa, mas normalmente menos irritante já que as hipóteses de irmos parar a um destes jantares é relativamente baixa. Estes eventos fazem parte de um grupo mais geral conheido como “encontros de casalinhos” que abrange, para além dos jantares, cafés, lanches, passeios a pé (normalmente ao pôr do sol), fins de semana fora e férias em conjunto. Destes vários encontros aquele que se presta mais facilmente a análise é o jantar, já que se desenrola num período de tempo que nem é muito curto (como um café ou um lanche) nem muito longo (como um fim de semana ou férias). As vantagens deste facto consistem em, por um lado, sendo um período relativamente curto não termos de os aturar durante muito tempo, e, por outro lado, demorar o tempo suficiente para que os fenómenos inter-casalínhicos se tornem visíveis.

Os jantares de casalinhos dividem-se em dois grandes grupos: os jantares fora de casalinhos (a não confundir com jantares de casalinhos fora, que significa um jantar de um casalinho que é fora, ou seja, que se veste de forma alternativa, tem bolsas dependuradas a grandes distância dos ombros, e alterna citações de autores desconhecidos e, largamente, irrelevantes com comentários do género “usaste demasiado raid para te veres livre dos mosquitos e sem querer mataste o vizinho de cima? ai, isso é tão dostoyevskyano...” e “sim, de facto ficar preso no elevador evoca sensações kafkianas... isso faz-me lembrar um dia em que pedi uma salada de tofu e courgetes que trazia uma barata enorme...”), e os jantares em casa de casalinhos. Começaremos pelos primeiros já que a probabilidade de encontrar alguém conhecido com quem precisamos de ter uma consersa urgente, sim, sim, tem de ser mesmo agora, isto não pode esperar, desculpem lá, mas combinamos para uma próxima, é substancialmente maior. Se isto acontecer o estudo deve interromper-se imediatamente por motivos éticos. Seria imoral sequer sugerir a alguém continuar num jantar de casalinhos quando surge uma hipótese de fuga.

Jantares fora de casalinhos:

Um primeiro aspecto a ter em consideração em jantares fora de casalinhos é a selecção de lugares. Tradicionalmente os casais sentam-se frente a frente ou num registo cruzado de modo a evitar os efeitos preversos da pertença a casalinhos. Isto obrigava os casalinhos a descentrarem-se da sua situação levando os seus membros a comportarem-se como pessoas normais durante a duração do jantar, conversando com outras pessoas e alimentando-se. No entanto esta tradição (quiçá milenar, ou pelo menos existente desde a invenção dos jantares fora) tem vindo a ser alvo de extermínio sistemático. Actualmente quando há jantares fora de casalinhos, os membros destes tendem a sentar-se lado a lado. Embora as razões para tal fenómeno sejam, em larga medida, desconhecidas, tem-se vindo a especular que se deve a “ser mais querido”, pois permite que o casalinho segrede ao ouvido um do outro, dê as mãos, troque carícias, descanse a mão na perna do outro/a e se envolva em abraços, beijos e até (nos piores casalinhos) em cenas que na maior parte dos países Ocidentais são citadas na lei sob o título de “atentado ao pudor”. Ora este tipo de práticas comuns aos casalinhos actuais torna o jantar uma ocasião particular (e particularmente odiosa). Em primeiro lugar as “conversas” tendem a decorrer entre casalinhos em vez de entre indivíduos; em segundo lugar devemos ressalvar que “conversas” é claramente um eufemismo. Não há conversas reais, pois os membros dos casalinhos estão na verdade a interagir entre si, pondo a mão aqui, mexendo o pé para alí, trocando um olhar de “sim, é isso fofinho!” ou “’tás parvo!? Claro que não!” (sim, este tipo de olhares termina sempre com pontos de exclamação). Nos casos mais graves a conversa que tentamos estabelecer com um dos membros do casalinho (normalmente o masculino) é abruptamente interrompida por uma expressão de dor no nosso interlocutor. Embora não tenha sido provado, há autores que argumentam que estes casos correspondem a situações em que o membro (normalmente feminino) do casalinho dá uma canelada ou pisa violentamente o seu companheiro por não gostar do rumo que a conversa está a levar ou simplesmente porque quer atenção. Nos casos menos graves as conversas são interrompidas no momento em que o membro do casalinho com quem estamos a falar se apercebe que o outro membro do casalinho também está a ter uma conversa independente. Aí a conversa que estava a ser mantida connosco cessa e o membro do casalinho intromete-se na conversa do companheiro/a, reestabelecendo a homeostasia casalínhica. O inverso também pode acontecer, isto é, ter um membro do casalinho a intrometer-se na nossa conversa com o seu/sua companheiro/a, exclusivamente para a minar.

A única alternativa contemporânea a este tipo de utilização de lugares conhecida corresponde à situação “homens vs. mulheres”. Neste caso os membros de casalinhos do sexo masculino sentam-se em lugares adjacentes e os membros de casalinhos do sexo feminino fazem o mesmo, criando dois grupos homogéneos em termos de sexo dos seus elementos. Esta situação, porém, corresponde apenas à formação de pseudo-grupos, pois não há união real de género. Por outras palavras, homens e mulheres não estão, respectivamente, juntos no sentido de se apoiarem mutuamente, pois acima do grupo está sempre o outro elemento do casalinho. Nestes casos o controlo dos respectivos é feito à distância, através da troca de olhares aprovadores ou reprovadores tais como “És mesmo gira... És a mais gira de todas...” ou “Não acredito que lhes estás a contar que as minhas cuequinhas fio dental de renda acetinada preto brilhante fizeram um efeito fisga entre o meu dedo grande do pé direito e o tornozelo esquerdo e foram parar ao pátio da dona Josefa do rés-do-chão esquerdo traseiras...” (atente-se que estes olhares, ao contrário dos anteriores, acabam sempre em reticências; presume-se que seja por causa da distância).

No fim do jantares fora de casalinhos verifica-se um efeito quase absoluto. As pessoas estão sempre mais cansadas do que se fosse um jantar de pessoas descomprometidas. Está tudo cansado e vão todos para casa, considerada uniformemente como o sítio ideal para descansar. As alternativas à ida para casa – como tomar um café nalgum lado, tomar um copo, sair à noite – são normalmente consideradas, mas, chegando à fase da votação, perdem sempre. Nas raras ocasiões em que este efeito não se verifica e os casalinhos encetam por uma das alternativas (normalmente tomar um café, aliás, um cafézinho rapidinho, só um bocadinho mesmo, porque estão mesmo mesmo cansados) o casalinho fecha-se novamente sobre si próprio, mas desta feita fazendo questão de mostrar o grande favor que estão a fazer aos outros presentes em brindá-los com a sua companhia. Respostas monossilábicas, cabeças deitadas em ombros de companheiros/as em sinal de cansaço brutal e comentários sarcásticos acerca da situação são comportamentos frequentes.

Jantares em casa de casalinhos:

A investigação deste tipo de jantares de casalinhos tem sido escassa por motivos óbvios. Ir parar a casa de alguém onde está a decorrer um jantar de casalinhos é pior que estar preso num elevador com um desportista adolescente acabado de sair do treino, antes de tomar banho, com mau hálito e flatulento. É uma situação kafko-dostoyevskyana: não há escapatória possível e a vontade de cometer homicídio em massa ultrapassa a consideração de qualquer remorso que possa advir no futuro (e isto é especialmente monty-pytoniano se o jantar for, por acaso, massa). Esta é a grande diferença deste tipo de jantares em relação aos anteriores. Existem algumas outras diferenças documentadas, como o facto de, dado muitas vezes não haver lugares suficientes à mesa, os elementos dos casalinhos se sentarem ao colo dos seus/suas companheiros para jantar, mas este domínio permanece ainda relativamente desconhecido devido aos riscos inerentes ao processo de inquérito.

A única conclusão a extrair aqui é que jantares de casalinhos são eventos a evitar sempre que seja possível jantar com pessoas normais ou mesmo sozinho/a. No entanto é também importante ter atenção, no caso infeliz de nos envolvermos em tal situação, pois a informação obtida poderá ser útil a outras pessoas inocentes que se deparem com o mesmo problema no futuro.

4 Comments:

Blogger Pinky said...

Fica aqui uma adenda: Pior que casalinhos felizes, só mesmo casalinhos felizes a passearem-se pela beira-mar num dia de sol resplandecente e calor abrasador. Enormemente agradecida por este post altruísta (Cruzes canhoto!, que não me veja em tais jantares nos próximos tempos!), *Pinky*

12:29 da manhã  
Blogger Ludmila said...

Eu como membra honorária de uma associação casalinhesca, venho decretar guerra a este blog... :)

Acho que os jantares de casalinhos são necessários à humanidade, pois há que compensar o divertimento dos "promíscuos" descomprometidos... Afinal não queremos que o mundo fique desequilibrado...

Os olhares com "!" e "..." são vitais para o comprometimento Dostoievskiano, além de que Kafka indica em inúmeras passagens como são vitais estas trocas de intimidade...
O cansaço pós-jantar de casalinhos, é perfeitamente normal, visto dedicarmos mta energia a 'casalinhar'.

Enfim... Vivam os casalinhos...

Membro nº 2123145134234141231255436345 da ACFOMMOTMMMTSRUD (Associação dos Casalinhos Felizes Ou Mais ou Menos Ou a Tentar Mais ou Menos Mas Talvez surta Resultado Um Dia) Ou qq coisa assim.. lol

2:41 da manhã  
Blogger Eurico Z. Cebolo, Reitor U.Parv. said...

Hmmm então tem de haver jantares de casalinhos para compensar jantares normais... Não consigo deixar de sentir que este argumento viola de algum modo a Declaração Universal dos Direitos Humanos xD

Mas enfim, há que respeitar a liberdade de expressão e aceitar todo o tipo de comentários propagandistas... ainda que só façam sentido para casalinhos :P

Já agora 2 sugestões: "Sindicato dos Casalinhos" tinha um impacto retórico muito maior; e quanto ao número de membro, porque não adoptar uma notação arredondada com potências de base dez?

8:59 da tarde  
Blogger Ludmila said...

Exmos Srs (e/ou talvez Sras) que odeiam casalinhos,

O Mundo tende para o equilibrio... E vocês (os não 'acasalinhados') é que nos forçam a tanto mel e tanta melgosidade... Pela vossa excessiva proactividade quanto a serem independentes (viva a ditadura casalinhesca). Nós vivemos agarrados e a acasalinhar pq vcs são dados 'à loucura' (tsk tsk).

Quanto ao nº redondo de notação xpto... Não exija potências desnecessárias a um membro do Sindicato... humpf.

;)

1:51 da manhã  

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